Ela (Her, 2013)

by

HER

Por Alessandra Marcondes

O filme Ela, um dos indicados ao Oscar 2014 (concorreu nas categorias melhor filme, trilha sonora, canção original e design de produção e levou a estatueta por melhor roteiro original) poderia ser um grande clichê sobre os males da vida moderna, passando pelo excesso de conexões via dispositivos que resulta em um grande vazio, pela reflexão de como estamos cada vez mais conectados e menos felizes ao mesmo tempo. Tá bom, o filme trata sim disso tudo em seu conjunto. Mas não o faz de maneira clichê, e o foco da trama é outro: o amor.

Theodore (Joaquin Phoenix) é autor-fantasma de cartas encomendadas por todo tipo de pessoa destinadas aos seus entes queridos, tipo serviço de tele-mensagem, só que mais personalizado. Só de ver algumas fotos do casal e ler um pouco sobre a descrição da pessoa amada, ele consegue compor uma bela mensagem de amor carregada de sentimentos que, na verdade, não são seus. Mas Theodore, na vida real, vive um momento complexo pós-separação e sofre o vazio deixado pela perda de seu próprio casamento. E é neste contexto que lhe é apresentado um sistema operacional de inteligência artificial personificado na figura de Samantha (Scarlett Johannson).

Samantha passa a ser a mais fiel companheira da rotina de Theodore e, bem mais inteligente do que a Siri ou qualquer comando de voz que a gente conheça hoje em dia, transcende o papel de secretária organizadora da sua agenda para fazer as vezes de amiga e namorada. E é aí que entraria a parte mais ‘bizarra’ da história, mas o roteiro evolui de uma forma tão natural e a relação do casal se faz tão sincera que passa a ser extremamente normal para quem assiste o fato de um romance ser estabelecido entre um ser humano, de carne e osso, e um sistema computadorizado. Samantha e Theodore vão se conhecendo aos poucos, apresentando seus mundos um para o outro, falando bobagem até tarde pelo telefone, dividindo suas dúvidas e seus anseios, assim como qualquer forma de relacionamento que a gente conhece. E aí que o roteiro dá uma sacudida em nossas próprias convicções: a partir do momento que nos relacionamos através de interfaces e que todo tipo de dispositivo se faz cada vez mais presente, o que é abstrato e o que é real? Se o sentimento existe, como explicar que um relacionamento com uma inteligência artificial seria menos real do que com outra pessoa, ainda mais considerando que, já que o sentimento parte de ambos, esta relação também não está livre de males do amor como o ciúme, a posse, a indiferença e o fim?

Joaquin Phoenix transmite belamente a transição emocional entre uma separação e um novo amor.

Joaquin Phoenix vive em “Her” a transição emocional entre uma separação e um novo amor e emociona.

A forma como Samantha se mostra encantada por coisas ‘simples’ do universo, como a praia ou a sensação de correr no meio de uma multidão, também deixa a sugestão sutil de como nós, humanos, estamos nos tornando apáticos. E quando somos apáticos em nossa rotina cada vez mais individualista, nos tornamos também desinteressantes uns para os outros. Desinteressantes ao ponto de uma voz amiga, emocional e apaixonada se mostrar mais interessante do que pessoas de carne e osso, independente dos desafios multidimensionais que esta relação teria como consequência. Claro que a dependência de dispositivos e conexões nasce de muitos problemas emocionais e tensões internas que nós mesmos vivemos, e ela em si acaba causando outros mil tipos de psicopatologias relacionadas à frustração, ansiedade etc, mas será que toda essa tecnologia também não é capaz de agregar valores positivos à nossa existência?

Embalado pela trilha-sonora minimalista do Arcade Fire – que cai como uma luva para este futuro não muito distante – o romance entre Samantha e Theodore convence mais do que muitos outros que já vi na telona, mesmo que Johannson não entre em cena em nenhum momento. O mérito disso, aliás, se concentra nas expressões totalmente emocionais de Phoenix, que passa do olhar melancólico ao sorriso ingênuo com facilidade e leva o filme praticamente sozinho, e na voz encantadora de Johannson que, mesmo não se materializando (que desperdício?), é peça-chave para desenhar esta bela relação que convence.

Por fim, “Ela” nos lembra como amar pode ser intenso, poético e arrebatador, independente das barreiras envolvidas. Em um mundo com tantos preconceitos embutidos, em que se recrimina amor à distância, amor entre pessoas do mesmo sexo, amor entre diferentes classes sociais ou [insira qualquer tipo de amor aqui] o longa ensina um pouco sobre a simplicidade deste sentimento. Ensina que nem toda relação sobrevive a todas as dificuldades, mas ainda assim pode resultar em um conjunto de belos momentos. Pode tirar do poço e fazer esquecer o sofrimento intrínseco à nossa existência, e tirar do poço pessoas como Theodore. Pessoas como eu ou como você.

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